13.6.17

Cidades e Soluções: "Uma cidade sustentável tem que cuidar das pessoas", diz André Trigueiro

Poluição. Falta de transporte. Falta de moradia. Esgoto a céu aberto. Violência. Escolas ruins. Sua cidade tem esses problemas? Qual não tem? A lista de desafios para melhorar a vida em nossas cidades é quase interminável. E pode engolir qualquer um que tente enfrentá-los da forma tradicional. Em seu programa Cidades e soluções, da Globo News, o jornalista André Trigueiro mostra há dez anos como é possível encontrar várias saídas para o beco em que nos metemos. Algumas soluções são tecnológicas, outras de gestão. Muitas são surpreendentemente viáveis. Agora, Trigueiro juntou a experiência acumulada com os programas e reuniu no livro Cidades e soluções - Como construir uma sociedade sustentável (Editora LeYa). 

Em entrevista à revista ÉPOCA, Trigueiro diz que o primeiro passo para encarar os imensos problemas ambientais e sociais das cidades é mudar o jeito de enxergá-los.

ÉPOCA – Como você justificaria a importância da pauta ambiental para uma cidade diante de tantos outros problemas prementes, como trânsito, saúde ou segurança?
André Trigueiro – Depois de muito tempo mergulhado nessas questões, e graças a algum aprendizado, não consigo mais dividir os problemas por setores isolados. Precisamos fazer um exercício de visão sistêmica. Precisamos de um entendimento da interconexão que dá sentido a tudo o que está neste Universo. Vale para o mundo microscópico ou para a astronomia. Vale para a análise de nossa realidade humana. Vale no ambiente das cidades. Podemos entender que há conexões entre a violência urbana e os aspectos ambientais hostis. A polícia sabe que nos meses mais quentes de verão há um repique nos indicadores de violência. Isso em parte porque no calor temos maior predisposição a ingerir bebidas alcoólicas, ir para rua, ficar irrequietos. O calor gera desconforto, eleva a impaciência. Vou dar outro exemplo de questão conectada. A desigualdade brasileira empurra para a periferia das cidades, sem planejamento, grande parte do contingente de população, sem saneamento adequado, sem moradia digna, sem higiene, sem asseio ou bem-estar. Isso poderia ser colocado como um problema ambiental. O meio ambiente não é sinônimo de bicho e floresta. Começa no meio da gente. Se a maior parte da humanidade vive em cidades, as questões urbanas, a chamada agenda marrom, têm enorme importância para acertar o passo na direção de um outro modelo de desenvolvimento.

ÉPOCA – Por que ainda é tão difícil enxergar a conexão entre vários problemas urbanos e a pauta ambiental?
Trigueiro – Talvez porque historicamente seja recente o grito contra a compartimentalização do saber. Esse foi o filtro que a ciência nos deu, estudando cada fenômeno meticulosamente. Temos especializações em cada curso. Temos um conhecimento fragmentado. Foi uma etapa importante de nossa história no planeta. Mas esse modelo nunca conseguiu explicar tudo. A gente vive a loucura de achar que meio ambiente é assunto de um único ministério ou secretaria. A forma holística de enxergar o todo é um olhar sofisticado. Era presente nas culturas ancestrais. Agora precisamos ter a humildade de reconhecer que toda a ciência e a inovação tecnológica não resolveram problemas essenciais. Isso passa por uma reeducação do olhar, um reposicionamento nosso no tabuleiro da vida.

ÉPOCA – Por que o meio ambiente não está na plataforma eleitoral dos prefeitos? Pelo menos com esse nome?
Trigueiro – O Brasil é desigual até na definição de cidades. Temos poucas grandes cidades, algumas médias. Mas a maioria das cidades é pequena. São cidades pobres, inadimplentes, com prefeitos muitas vezes analfabetos funcionais. Existe um analfabetismo ambiental crônico de prefeitos que assustam quando sentam na cadeira e vão percebendo as encrencas da administração municipal. Eles encaram as demandas da folha de pagamento e dos poucos recursos para investimento. Lidam com uma brutal falta de informação sobre como transformar limão em limonada. É um absurdo o Brasil não ter cumprido a política nacional de resíduos sólidos no quesito de eliminação dos lixões. Os prefeitos conseguiram pressionar para adiar o prazo. Argumentam que não têm dinheiro. Já perguntei a vários especialistas no tema se a falta de recursos é um bom argumento. Eles dizem que um aterro sanitário adequado é uma solução cara mesmo. Até se vários municípios se juntarem para dividir a conta. Mas existe outra forma de encarar isso. Para começar, é possível o município promover a separação do lixo seco e do úmido. O lixo seco não vai para o lixão. Pode ser passado para uma empresa terceirizada dar uma destinação correta, por reciclagem. Parte do lixo úmido pode ir para compostagem e virar adubo. Só isso já reduz bastante o que vai para o lixão. Simplesmente jogar tudo no lixão é um crime de lesa cidade. É um misto de desinformação e falta de vergonha na cara.

ÉPOCA – Se as cidades forem mais ecológicas – com menos poluição e desperdício de energia – elas também serão melhores para viver?
Trigueiro – Para uma cidade ser sustentável de verdade precisa ter pessoas que se sintam participando efetivamente do destino daquele lugar. Precisa ter uma boa governança, portanto. Você precisa de divisão do poder. Não dá para ter pobreza ou exclusão. Precisa ser um lugar de convívio saudável. Uma cidade que implode uma cracolândia com bomba de efeito moral não pode ser sustentável. Se você pensar bem, a cidade somos nós. Senão ficamos na cartilha do sustentável convencional, que olha para o lixo, para a energia etc. Isso não basta. Uma cidade sustentável tem de cuidar das pessoas.

ÉPOCA – Uma cidade pode ser grande demais para ter solução?
Trigueiro – É natural que uma megalópole tenha uma pegada ecológica absurda. Ela terá de importar água, comida e energia. O exemplo mais impressionante de pegada ecológica de uma cidade é Las Vegas. Em termos de país, o Japão. Não conseguimos imaginar nenhum nem outro sem uma grande logística de importação de recursos básicos para a vida. Existe um grande desafio. Em parte ele pode ser resolvido por tecnologia. Mas passa muito por uma cultura não consumista. Com a contenção dessa sanha pelo consumo exacerbado, que demanda a disponibilidade de recursos numa escala insustentável.

ÉPOCA – Sabemos que os níveis atuais do consumo geram uma demanda insustentável dos recursos naturais. Mas como falar de moderação do consumo para uma parte da população que está lutando por várias gerações para subir socialmente, melhorar de vida, ter acesso a bens, serviços e confortos que seus pais nunca tiveram?
Trigueiro – Não é fácil. A saída passa por mostrar que se a gente souber usar o que entendemos como importantes, se tivermos discernimento, não vai faltar. Precisamos acionar o aplicativo do consumo consciente do nosso HD. O patrulhamento sempre será antipático. Não acredito em definições de limites. São uma afronta ao nosso livre-arbítrio. O ambientalista fixado na palavra “não” vira ecochato. Mas a mensagem precisa ser passada. Estive na China em 2014. As lojas mais suntuosas das grifes internacionais estão em Pequim. Isso num país sem imprensa livre, sem Ministério Público, com leis trabalhistas vulneráveis. Não há solução para isso. A extrapolação do consumo chinês para níveis médios americanos é uma conta que não fecha. Esse é um debate mais sério. Não totalmente prazeroso. Precisamos pensar no mundo como lugar finito. Cada projeto para ser aprovado precisa fazer a conta de trás para frente, avaliando se o ambiente comporta. Um exemplo disso é a regra ambiental do bloco europeu para o Rio Danúbio. A regra número um para qualquer novo empreendimento é respeitar a vazão do rio e a qualidade da água. É uma forma de fazer política pública fazendo a conta de trás para frente, respeitando os limites naturais. Veja como o agronegócio brasileiro faz uma conta esquisita. Diz que precisa da Amazônia para alimentar o mundo. Mas se não tiver mais a Amazônia, como fica o mundo? E estamos falando de qual dieta? Se os humanos não mudarem o cardápio hoje com tanta proteína animal, não há planeta que sustente. A gente se denomina como sociedade do consumo. Não somos reconhecidos como cidadãos, mas como consumidores. Teremos de mudar isso. Será sem patrulhamento. Sem caça às bruxas. Mas não podemos falsear a verdade.

Fonte: Revista Época

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