Formado e pós-graduado em Ciências Sociais pela Universidade La Sapienza de Roma,com pós-doutorado na Sorbonne, em Paris, Massimo Di Felice jamais se deu por satisfeito com as respostas que essas duas ciências eram capazes de produzir para explicar os fenômenos sociais. Entre as andanças pela América Latina e o doutorado em Comunicação na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) — onde é também professor —, Di Felice encontrou, nas mídias digitais, o elo fundamental para entender as enormes mudanças na relação contemporânea do homem com o meio ambiente. Mudanças que, não por coincidência, caminham paralelas ao avanço das discussões planetárias sobre sustentabilidade.
Conectar essas discussões – e compartilhar o conhecimento coletivo produzido a partir delas – é um dos objetivos do e-coLab (Laboratório Internacional de Pesquisa e Inovação em Arquiteturas Interativas Digitais para a Sustentabilidade), projeto cujo lançamento está previsto para o mês de abril, sob a batuta do pesquisador italiano. Tal qual um maestro, Di Felice pretende harmonizar saberes aparentemente dissonantes de acadêmicos, sociedade civil, instituições públicas e empresas para empoderar comunidades na produção de inovação sustentável.
Estofo intelectual não falta ao projeto. O e-coLab surge no contexto do ATOPOS, o Centro de Pesquisa em Comunicação Digital da ECA, uma rede internacional de estudiosos de diversas áreas em vários países que, desde 2005, vem produzindo conhecimento inovador por meio da formação de novos pesquisadores, edição de publicações e compartilhamento de resultados com os mais variados setores da sociedade, justamente objetivando investigar o impacto das tecnologias digitais no modo de vida contemporâneo. Sobre esses impactos, desafios e sustentabilidade, Di Felice concedeu à Ideia Sustentável a entrevista exclusiva que você acompanha a seguir.
Ideia Sustentável: Como surgiu o seu interesse pela interação entre mídias digitais e sustentabilidade?
Massimo Di Felice: Minha formação é em Ciências Sociais. Sou europeu, mas vim morar na América Latina e encontrei, na Comunicação, um eixo de estudo para analisar o que chamo de “formas comunicativas do habitar”, ou seja, como a nossa forma de estar no mundo e as mídias digitais, em particular, do ponto de vista histórico, alteram nossa condição habitativa. Por condição habitativa entendemos as formas de nos relacionar com o meio ambiente, com o território. Hoje, por exemplo, é muito comum vivermos em outros países, mas sem perder o contato direto com nossas famílias pelo Skype ou YouTube. Temos, aqui, portanto, um passo para começar a verificar a relação entre mídia e ecologia, isto é, como os meios de comunicação possibilitaram e modificaram, ao longo da história, a nossa relação com o meio ambiente. Abriu-se todo esse grande campo que foi o de pensar a inovação tecnológica digital e, portanto, as novas arquiteturas informativas/interativas, difundidas por todos os lugares, e que criam um novo tipo de sinergia com o meio ambiente.
IS: De que maneira se dá essa sinergia?
MF: Os conceitos-chave são conexão e rede. Falo de conexão no sentido mais profundo do termo: para sermos interativos, precisamos nos conectar. Essa conexão é sempre uma geradora de novidades, porque nos conectamos a redes que obviamente não conhecemos por inteiro; e isso cria um processo de modificação/alteração.
Esse dinamismo da conectividade é um elemento-chave para entender a mudança na nossa relação com o meio ambiente, porque se cria uma cultura da interdependência e também da criatividade da interdependência.
O homem ocidental estabeleceu uma separação entre homem e meio ambiente, homem e natureza, homem e técnica. Essa concepção vem do humanismo grego: o homem como centro da sociedade e o território em volta, como se ele não o habitasse. Essa visão é a mesma que gera a destruição do meio ambiente quando, por exemplo, uma empresa multinacional usa um espaço como bem entende, sem a mínima preocupação com a população ou com o que vai acontecer ali depois de 10 ou 15 anos. Trata-se da concepção de que o homem nada tem a ver com o meio ambiente.
A cultura das redes e da conectividade inverte esse processo e introduz essa cultura que faz com que nos percebamos não somente como dependentes do meio ambiente, mas também, como parte dele. Trata-se de uma perspectiva particular, em que somos um dos pontos de uma rede mais complexa, na qual tudo o que provocamos gera impacto no todo que, por sua vez, tem impacto sobre nós. Assim, o conceito de conectividade é o início de um novo conceito de ecologia.
IS: Esse, inclusive, é o tema de seu último livro, Redes Sociais e Sustentabilidade…
MF: Exato. A sociedade contemporânea é uma sociedade muito mais complexa. Não está composta apenas por humanos, mas por diversos atores, como a tecnologia e as mídias digitais. Qualquer atividade social, hoje, acontece em conexão com as redes digitais, desde usar um cartão de crédito, abrir o jornal de manhã ou trabalhar. Nosso social não compreende apenas a dimensão humana, como a teoria social clássica pensou. É um social no qual a tecnologia desenvolve um papel muito importante e, ao mesmo tempo, no qual a conectividade não acontece apenas com a tecnologia, mas em uma cultura que nos põe em relação diferente com o meio ambiente e a natureza. Portanto, todo esse complexo representa um novo tipo de ecologia.
Algo extremamente importante é que a sustentabilidade está ligada a uma lógica ecossistêmica que faz com que não nos percebamos mais como o centro e os artífices únicos de uma ação, mas como parte de uma relação mais complexa, na qual uma empresa, por exemplo, que sinta necessidade de se relacionar com o meio ambiente de forma mais cuidadosa e responsável, tem de se envolver com outros atores.
IS: Essa teoria é uma das bases do e-coLab? Fale um pouco sobre o projeto.
MF: O e-coLab está ligado ao contexto da Universidade de São Paulo e seu desenvolvimento de tecnologias. O Brasil é hoje, reconhecidamente, uma potência acadêmica mundial. A USP aparece bem posicionada nos rankings internacionais, tem professores em diversos países e desenvolve pesquisas em inovações de muitíssima qualidade. Porém, com o advento das redes digitais, temos uma mudança muito importante na essência do conhecimento e, consequentemente, também no papel da universidade como um todo.
Um dos elementos de discussão é que o conhecimento, hoje, tem um suporte digital muito importante: pode ser deslocado facilmente, as aulas não são necessariamente presenciais e consegue-se acesso a todas as informações em qualquer lugar.
Uma das ideias precursoras do e-coLab foi exatamente a de pensar uma rede de inovação sobre esse novo papel da universidade. Historicamente, era distribuir conhecimento, preparar e formar professores e profissionais nas áreas do conhecimento. Hoje, podemos acessar o conhecimento por meio de uma arquitetura digital que permite aulas não apenas presenciais – possibilitando a todos o acesso às informações e ao conteúdo -, mas também utilizando-se dispositivos nos quais pode-se assistir a todas as aulas do ano letivo.. Então, se a função do professor for apenas ir a uma sala e dar aulas, torna-se uma atuação muito reduzida.
Uma outra consequência disso é a transformação da forma de produzir inovaçao. Uma vez que toda a informação está disponível para quaisquer setores da sociedade, o que vai fazer a diferença é conseguir assimilar informações de forma original. E buscar uma informação nova – palavras, conceitos novos – perante a complexidade, por meio de novas interpretações.
Portanto, a universidade não é mais apenas um lugar físico, onde se produz conhecimento. Ela deve desempenhar o papel de criar redes de inovação. Essas redes precisam somar atores diferentes: sociedade, empresas, entidades públicas, enfim, grupos interessados em buscar inovação perante determinada situação. O e-coLab nasce com a intenção de conectar uma rede de atores que busque inovação no âmbito da sustentabilidade.
Mas por que as redes digitais? Porque são grandes amplificadores de processos cognitivos e de processos sociais; mas também porque as redes digitais produzem um elemento que é extremamente importante, que se chama em nível internacional de open government. Isto é, a possibilidade de estabelecer processos decisionais acompanhados por toda a população – de transformação, discussão, projetos sociais – de forma aberta e transparente. Isso está acontecendo em vários países: uma nova cultura da gestão pública, da política e da democracia.
Processos são implementados não mais por ideologias políticas – como nos anos 1970, quando alguns intelectuais e líderes as criavam -, mas por uma cultura que se difunde nas redes digitais e que está oferecendo acesso técnico, por exemplo, a processos decisórios que, antes, eram fechados, aconteciam entre quatro paredes. Hoje, a população inteira pode acompanhá-los. E, como acontece em muitos casos, criticar, opinar a respeito, juntar-se em redes para reverter processos negativos.
IS: Segundo a Ecosofia e um de seus representantes, o pensador francês Michel Maffesoli, há um certo “ambiente de sustentabilidade” no ar que envolve as pessoas, mas ainda não foi teorizado. O e-coLab pretende, de alguma forma, ajudar a teorizar esse novo clima reinante?
MF: Maffesoli foi o responsável pela retomada do conceito de Ecosofia, que começa com outros autores, lá atrás, como Arne Naess e Felix Guattari. E o fez de uma forma muito feliz, porque o relaciona a um tipo de complexidade que não é racional. A sociologia de Maffesoli é muito pós-moderna e, portanto, pouco ligada ao ator político. Essa concepção de ecologia, na nossa interpretação como centro de pesquisa, é paralela ao advento das redes digitais. A climatologia ecosófica do Maffesoli, para nós, tem origem numa nova relação com o meio ambiente que as redes introduzem.
A evolução da difusão da cultura da sustentabilidade é absolutamente paralela à expansão das redes e tecnologias digitais. Portanto, essa combinação é importante e teoricamente orienta uma nova interação com a tecnologia e um novo conceito de técnica, de meio ambiente, de desenvolvimento humano.
Maffesoli liga muito esse conceito à origem do humano, que tem a mesma etimologia da palavra húmus: fertilidade. Então, pensa-se um humano que não seja fechado ao externo – a técnica ou o meio ambiente -, mas aberto: afinal, ele encontra sua própria especificidade nas interações.
Assim, há uma ampla necessidade de construção teórica, que é um dos objetivos principais do e-coLab. Isto é, desenvolver uma cultura, não sei se social, filosófica… As definições estão faltando! Mas isso é bom! Outra característica do conhecimento contemporâneo é a necessidade de juntar o que o pensamento positivista separou. Qual seria a disciplina que poderia estudar a sustentabilidade? Todas, não?
IS: No entanto, você defende a necessidade de se encontrar novas palavras que traduzam essas discussões, já que a própria expressão ‘sustentabilidade’ está, de certa forma, desgastada…
MF: O processo de transformações atual é muito desafiador. Isso é muito interessante, sobretudo para o meu trabalho de pesquisador, porque o desafio não é tanto o de produzir conhecimento, mas buscar novas interpretações e novas palavras a partir de um conhecimento consolidado.
Estamos diante de transformações na humanidade que, nos últimos 50 anos, foram maiores do que em 400 ou 500. Fizemos mudanças no nosso estilo de vida, na forma de habitar, em tudo! Portanto, tudo é muito rápido, não conseguimos acompanhar. Estamos em uma situação de buscar o conhecimento coletivo. No mundo contemporâneo, ninguém mais é “o sabido”, aquele que pode nos indicar o conhecimento. Devemos juntar os saberes, de forma reticular, para buscar a inovação. Aqui nasce o e-coLab.
IS: Seria possível citar um exemplo prático da interação das mídias digitais com as pessoas que tenha efetivamente mudado comportamentos?
MF: Um exemplo bastante interessante é a criação de uma rede digital que está mudando os hábitos do consumidor e as relações de produção alimentar na Europa. É um projeto que assume nomes diferentes em vários países, mas funciona da mesma maneira. A lógica é a formação de uma rede de produtores locais. Ao redor de Roma, por exemplo, os agricultores de fazendas pequenas e médias fazem uma lista da quantidade de itens que oferecem e disponibilizam em um site. O consumidor acessa, compõe sua cesta semanal ou mensal, paga com cartão de crédito e recebe os produtos em casa. Esse processo supera a distribuição, conecta consumidor e produtor de forma direta, premia quem produz sem agrotóxicos, com qualidade, e gera, portanto, uma nova relação. Isso se difundiu muito em menos de dois anos. Existem muitos outros exemplos, mas esse revela como uma tecnologia da informação pode transformar por inteiro as relações entre produtor e consumidor, modificar comportamentos errados e premiar os positivos.
IS: Diante disso, as grandes empresas terão de repensar tudo o que estão fazendo hoje. O que elas têm a aprender com as mídias digitais?
MF: As redes digitais, de fato, criam uma arquitetura social naturalmente descentralizada. Todas as instituições que têm uma constituição vertical – a maioria, portanto – estão sendo desafiadas a uma nova oportunidade. O consumidor quer opinar, comentar. Ele pode, hoje, destruir uma empresa. Quem tem uma informação importante pode colocá-la na rede e produzir um impacto considerável. No Brasil, há vários casos de empresas que tiveram, de repente, de alterar a própria produção original. Esse é um primeiro desafio para as empresas: encarar uma lógica na qual o processo não está consolidado, porque se insere num contexto em que a mudança e a transformação são valores básicos, fundamentais. Portanto, todas aquelas formas de pensamento, as ações direcionadas ao reproduzir e ao conservar são, hoje, perdedoras.
A grande questão é que, numa cultura industrial tradicional, as empresas tinham um objetivo e uma estratégia para alcançá-lo e “consertá-lo”, se fosse preciso. Agora, no contexto de rede, tal postura se torna algo negativo e a prerrogativa de um fracasso certo. Na sociedade contemporânea, deve-se extrair a força das críticas e das relações, em vez de considerá-las uma oposição, um inimigo ou algo que deva ser combatido, como acontecia na lógica tradicional. Assumir a lógica de rede significa descentralizar o conceito de empresa. A empresa, hoje – assim como a universidade -, não tem mais o mesmo significado.
IS: Essa lógica dilui, de certa forma, o conceito de liderança?
MF: Pela nossa experiência e pela de vocês (Ideia Sustentável), concordamos que a liderança é fundamental. Acredito que o centro, agora, está no conceito de inovação: como o líder reage diante do processo de inovação e transformação. Há dois tipos de líder: aquele que se afasta e não se deixa desafiar pelo processo inovativo e o que considera esse processo como a essência do humano – que, no fundo, também é a essência do empreendedorismo. Os empreendedores atuais estão, na maioria dos casos, preocupados em preservar o seu lugar e seus privilégios. Não têm mais coragem. Perderam a essência dos primeiros empreendedores, que era justamente enfrentar o risco e o perigo, como fazia Marco Pólo e os primeiros mercadores ao rumar para o outro lado do mundo sem saber nem se chegariam a algum lugar.
Um dos grandes valores do Ocidente é o espírito de inovação, do correr risco. Os verdadeiros empreendedores, portanto, têm nisso a sua liderança, e não tanto no papel institucional. Numa empresa moderna, um empreendedor poderá ser líder mesmo que ele tenha acabado de chegar e não seja ‘ninguém’. A companhia pode confiar nele e oferecer um papel de destaque. Quem sabe, aprender com ele. A figura do líder é, atualmente, a de alguém que sabe criar redes porque sabe aprender com elas. E constrói a sua liderança não baseada num fato institucional, hierárquico, mas, sim, na sua capacidade de estar aberto às inovações e continuar a se desafiar e aprender continuamente.
Penso que os verdadeiros líderes em sustentabilidade têm esse perfil. São pessoas que se deixaram desafiar. Pensaram: “Olha, isso vai mudar, então devemos mudar a nossa própria concepção de empresa, de responsabilidade e de nosso papel como líderes.”
IS: A figura do líder, então, vai continuar existindo?
MF: Vai continuar existindo, mas acho que vai se pluralizar, isto é, haverá inovação a partir de processos distribuídos, com mais lideranças. Por exemplo: ter acesso a bancos de dados hoje, é uma forma de exercer a liderança; dominar a tecnologia ou estabelecer diálogo com a sociedade civil também pode continuamente desenvolver processos de inovação e liderança. O líder contemporâneo é alguém que sabe construir processos reticulares, aplicá-los e criar algo junto a outros atores. Não é aquele líder inspirado que, digamos, emana sabedoria. O mesmo ocorre com nossos trabalhos intelectuais. A última coisa que um intelectual deve fazer é não ser humilde. E isso é uma outra característica do líder contemporâneo: a humildade de saber que, para esse tipo de processo complexo, é preciso criar equipes de líderes. Portanto, o líder se pluraliza. Teremos vários líderes que vão “co-agir”.
IS: A rede digital pode ajudar a preparar novos líderes?
MF: Não só é capaz de preparar como também de acelerar o processo. Por isso estamos muito otimistas. Temos uma pós-graduação presencial em Redes Sociais e Sustentabilidade, na USP, com duração de um ano e meio, que começou a preparar profissionais para liderar processos de sustentabilidade. Mas há outro elemento que é a possibilidade de as universidades públicas distribuírem seu conhecimento e informações online, gratuitamente, para comunidades e para todos os setores da população, em municípios, áreas longínquas e até numa empresa.
Uma estatística interessante mostra que, hoje, os cursos online são utilizados por pessoas de nível cultural muito alto. Porque são profissionais que já concluíram a sua formação acadêmica, mas querem ampliá-la. E, obviamente, esses cursos estão sendo muito difundidos, pois podem ser realizados até em universidades de outros países. Isso cria uma forma de coletividade do conhecimento muito interessante. O conhecimento online é uma grande arquitetura de acesso à informação. Devemos saber utilizá-lo para criar e implementar a cultura da sustentabilidade.
É uma tendência irreversível. As universidades estão diante do desafio de se digitalizar – e o estão fazendo. Hoje, os livros podem ser baixados em tablets online. Não se gasta mais papel e os custos diminuem (70% dos custos de um livro vêm da distribuição e da loja). Temos acesso imediato a qualquer obra publicada em qualquer lugar do mundo. É o exemplo mais evidente de como estamos numa direção de acesso total.
IS: E isso significa inclusão digital…
MF: Sim, e essa é outra discussão que o e-coLab está impulsionando. O que é inclusão digital? A resposta, em geral, é que é o acesso às redes digitais e computadores pelos setores menos favorecidos da população. Elaboramos um conceito de inclusão digital mais ecológico ou sustentável, que é o seguinte: o processo não interessa apenas às pessoas, mas também ao território e ao meio ambiente. Assim, inclusão digital não significa apenas digitalizar e conectar as pessoas, mas também, o território. Podemos digitalizar uma biodiversidade inteira no mapa de um ecossistema. Isso gera uma possibilidade de conhecimento e de monitoramento do meio ambiente, de sabermos qual o nosso impacto nesse território.
É isso que o e-coLab pretende impulsionar com arquiteturas digitais interativas. O primeiro passo é oferecer acesso às informações digitais ecológicas às populações. Secundariamente, uma vez que a comunidade adquiriu esse conhecimento, digitalizar seu território, isto é, criar um processo de digitalização no qual o meio ambiente possa ser conhecido e monitorado na mesma comunidade. A terceira fase será a conexão da comunidade desse território, uma vez que ambos estejam digitalizados, e a produção de projetos de sustentabilidade, que serão realizados em rede e acompanhados por todos os participantes de forma transparente e, logo, totalmente inclusiva. Por fim, vem a incubadora do e-coLab, com atores diversos que possam entrar em sinergia para tornar aquele projeto realidade. Assim, cria-se uma rede de inovação com etapas precisas e objetivo claro.
IS: Não se trata, portanto, apenas de inclusão digital, mas também ambiental e social?
MF: O processo de inclusão é por certo estratégico, mas não apenas a inclusão de pessoas. A grande transformação da relação da ecologia é a digitalização. A natureza digitalizada. Teremos uma outra percepção da natureza. Hoje sabemos, em tempo real, o que está acontecendo com a camada de gelo do Pólo Norte ou com o desmatamento na Amazônia. Isso cria não somente uma consciência maior mas também uma outra conexão com o território. Sabemos o que provocamos no meio ambiente. E isso está criando uma cultura da conectividade que chamamos de nova ecologia.
Outro objetivo teórico do e-coLab é contribuir com a discussão teórica que procura pensar um novo modelo de social. Responder àquela famosa pergunta: quando falamos de social, quem somos? E quantos somos? Temos, na cultura brasileira, um campo maravilhoso, porque as culturas tradicionais – como as indígenas – possuem um conceito de social exatamente como o de que estávamos falando. Em uma aldeia indígena, a onça é cidadão, o peixe do rio é cidadão, a criança é cidadã. O parlamento imaginário deles seria um parlamento composto não apenas por pessoas, mas também por bichos e plantas. Devemos pensar um outro tipo de parlamento, além do político, que inclua o meio ambiente. Um tipo de democracia que podemos dizer que os povos indígenas já praticam no Brasil, que considere não apenas a opinião dos humanos, mas também o protagonismo de outros atores do nosso planeta, seres com os quais convivemos, uma vez que as nossas ações geram impactos sobre eles.
Essa transformação é muito importante e devemos implementá-la na linha de pensar uma nova contratualidade, que não seja o modelo iluminista – aquele contrato social entre classes que se contrapõem por ideologias ou interesses econômicos. Esse é um tipo de sociedade constituída na Europa que, hoje, assim como os líderes, não é mais contemporâneo.
O Brasil é naturalmente um país-laboratório para pensar a transformação. Acho até que tem uma vocação natural de se tornar um modelo inspirador para o mundo. Mas, para fazer isso, tem de optar primeiramente pela inovação nas academias, nas empresas, nas ONGs, enfim, em todos os setores do social. E de uma forma que eu chamaria de muito radical, mas não no sentido estúpido do termo. No sentido da inovação.
Essa liderança, no entanto, necessita de um processo de transparência em que não adianta parecer sustentável. Portanto, Maquiavel não serve mais! É o contrário da ética pública da mídia de massa. Nesta, o importante é parecer – o político, por exemplo, não precisa ser, mas, sim, parecer. Hoje, no entanto, as redes desmascaram tudo. Um líder que tenta vender algo que não é não vai funcionar! Isso é interessante também nessa nova ecologia. Quando falamos de sustentabilidade, não falamos apenas de transformações na forma de conduzir, mas também de uma mudança interior dos indivíduos, que se abram para um tipo de cidadania na qual ele deve atuar 24 horas em sustentabilidade.
IS: Você acredita que as mídias digitais têm o poder de promover a autotransformação?
MF: O primeiro impacto das redes digitais é transformar o privado em público. A vida privada torna-se de caráter público – por exemplo, as contas bancárias dos políticos ou a coleta seletiva do nosso lixo. Isso já cria uma outra forma de valor que vai modificar esse aspecto de não adiantar parecer o que você não é. Estamos diante de uma realidade que nos monitora. Portanto, se queremos ser sustentáveis, temos de estar abertos a mergulhar num processo para sair do nível de equilíbrio e buscar formas melhores, mais sustentáveis, seja no âmbito privado ou no público. Somos acostumados a pensar o meio ambiente como algo externo, como também a técnica e a mídia. Na verdade, as redes digitais representam a nossa forma de conhecer o mundo, de organizar nossa inteligência, pois nosso cérebro funciona a partir de estímulos externos.
Quando falamos em tecnologias da inteligência, falamos de inteligências, não de ferramentas, de técnicas. Falamos de como é a inteligência contemporânea: uma grande rede mundial conectada a informações com as quais dialogamos continuamente. Esse processo gera certamente uma transformação do nosso processo cognitivo e também do que tradicionalmente era chamado de político. A política já não é mais a atividade de alguns eleitos, mas o que todos nós fazemos em rede, como inovamos, melhoramos e vamos implementar processos de inovação. Eleger um político, como um presidente, não basta. A nova ecologia é também uma nova cultura, uma nova ética. Na qual outro grande valor é o compartilhamento. Assim são os verdadeiros inovadores: tudo o que produzem, compartilham.
IS: Que produtos ou ações o e-coLab pretende entregar à sociedade?
MF: É importante enquadrar a produção do e-coLab dentro do ATOPOS, que é um centro de pesquisa transdisciplinar e internacional dedicado ao estudo do impacto da comunicação digital na sociedade, integrado por pesquisadores de várias áreas – Biologia, Engenharia, Educação, Ciências Sociais, Arquitetura, História, Pedagogia, Filosofia. O ATOPOS já nasceu como uma entidade cujo objetivo é buscar entender a digitalização como um processo importante que não pode ser analisado somente do ponto de vista comunicativo e técnico, mas também nas suas mais diversas transformações.
O e-coLab tem a intenção de reunir, em uma única rede, atores interessados em criar projetos nessa linha, bem como implementá-los e acompanhá-los.
O pressuposto é criar um laboratório de inovação e excelência (como é o padrão da USP) e, portanto, dialogar com os grandes laboratórios do mundo, como MIT (EUA), Sorbonne (França), além de centros na Itália, Londres, Alemanha e outras partes do mundo – e com grandes nomes do do pensamento ecológico e digital contemporâneo, como: Edgar Morin, Michel Maffesoli, Pierre Lévy, M. Puech., B. Latour, Derrick de Kerckhove, entre outros.
O objetivo é integrar essa rede de centros de pesquisas internacionais de excelência com empresas, sociedade civil e ONGs para gerar, monitorar e expandir processos de sustentabilidade em comunidades e municípios. É um percurso longo, mas a inovação profunda e duradoura não se cria de um dia para o outro.
Acreditamos que, por meio das redes digitais, será possível estabelecer sinergia entre os diversos setores, criando uma relação virtuosa para produzir um processo ecológico-econômico, com geração de renda para as comunidades e preservação do meio ambiente. E que seja protagonizado pelas próprias comunidades, com a parceria dos demais atores envolvidos.
O digital é hoje o grande motor de transformação e de mudança. Por enquanto, ainda estamos dirigindo uma Ferrari dentro da garagem.
Fonte: Revista Ideia Sustentável
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